Conversa de pai e filha (Antonio Maria)

Conversa de pai e filha (Antonio Maria)

 

eu plural: alguns poucos – poucos mesmo – não sabem que o bom antonio maria ou simplesmente maria, como era carinhosamente chamado pelos amigos, além de um bom compositor e pianista era também um excelente cronista. muito bom mesmo. sem querer insistir em chover no molhado, poderíamos até dizer tão bom quanto um fernando sabino, paulo mendes campos, drummond e – ele também – um rubem braga. uma coisa, porém, para que não se discuta, que fique clara: maria era do time. ou melhor: dessa seleção.  somente para não dizer que não falei no compositor, basta dizer que são de sua – dele – autoria clássicos como valsa de uma cidade, ninguém me ama e manhã de carnaval.  maria teve 62 composições suas gravadas pelos melhores intérpretes. mas é o cronista que leio agora. e, se você tiver um tempinho, leia também. uma beleza de cronista. uma beleza de crônica – 1berto de almeida

(Crônica de ANTÔNIO MARIA)

carol e eu

” – Pai, eu tenho um namorado.
Pai, que ouve isto da filha mocinha, pela primeira vez, sente uma dor muito grande. Todo sangue lhe sobe à cabeça, e o chão do mundo roda sob seus pés. Ele pensava, até então, que só a filha dos outros tinha namorado. A sua tem, também. Um namorado presunçosamente homem, sem coração e sem ternura. Um rapazola, banal, que dominará sua filha. Que a beijará no cinema e lhe sentirá o corpo, no enleio da dança. Que lhe fará ciúmes de lágrimas e revolta; pior ainda, de submissão, enganando-a com outras mocinhas. Que, quando sentir os seus ciúmes, com toda certeza, lhe dirá o nome feio e, possivelmente, lhe torcerá o braço. E ela chorará, porque o braço lhe doerá.
Mas ela o perdoará no mesmo momento ou, quem sabe, não chegará, sequer, a odiá-lo. E lhe dirá, com o braço doendo ainda: “Gosto de você, mais que de tudo, só de você.” Mais que de tudo e mais que dele, o pai, que nunca lhe torceu o braço. Só de você é não gostar dele, o pai. E pensará, o pai, que esse porcaria de rapaz fará a filha mocinha beber uísque, e ela, que é mocinha, ficará tonta, com o estômago às voltas. Mas terá que sorrir. E tudo o que conseguir dela será, somente, para contar aos amigos, com quem permuta as gabolices sobre suas namoradas. Ah! O pai se toma da imensa vontade de abraçar-se à filha mocinha e pedir-lhe que não seja de ninguém. De abraçá-la e rogar a Deus que os mate, aos dois, assim, abraçados, ali mesmo, antes que torçam o bracinho da filha. Como é absurdo e egoisticamente irracional amor de pai! Mais que ódio de fera. Ele sabe disso e se sente um coitado. Embora sem evitar que todos esses medos, iras e zelos passem por sua cabeça, tem que saber que sua filha é igual à filha dos outros; e, como a filha dos outros, será beijada na boca. Ele, o pai, beijou a filha dos outros. Disse-lhe, com ciúme, o nome feio. E torceu-lhe o braço, até doer. Nunca pensou que sua namorada fosse filha de ninguém. Ele, o pai, humanamente lamentável, lamentavelmente humano. Ele, o pai, tem, agora, que olhar a filha com o maior de todos os carinhos e sorrir-lhe um sorriso completo de bem-querer, para que ela, em nenhum momento, sinta que está sendo perdoada. Protegida, sim. Amada, muito mais. E, quando ela repetir que tem um namorado, dizer-lhe apenas:
– Queira bem a ele, minha filha.”

ULTIMA HORA, 21 de julho de 1960

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