Noel inspirado

Dom Cardoso
Noel Rosa, o poeta irretocável e melodista inspirado

Estou de volta com “as confissões de Noel Rosa”. Ninguém em tão pouco tempo de vida -26 anos – produziu tanto e com esmerado talento. Poeta Irretocável, Noel também era melodista inspirado além de cronista de costumes. Sua obra é um exemplo de inspiração, para quem pretende estudar, explorar, pesquisar ou entender a Música Popular Brasileira. Ele conquistou tantos corações anônimos, que as meninas de Vila Isabel, onde nasceu, já não admiravam, apenas, os galãs do cinema. Noel concorria com eles. Não se sabe de onde partia tanto encanto: se a sua voz, a doçura das composições ou o dom de arrebanhar fãs masculinos e femininos, mesmo sem ser bonito ou fatalmente sedutor. Vamos ver o que ele diz hoje, para meus leitores:
“Eu vou para a Vila” constitui o meu primeiro grande êxito. Toda a cidade cantou a melodia; toda a cidade aprendeu-lhe o ritmo. Às vezes, eu vinha para casa, alta hora da noite. Nem viva alma. Só a emoção das estrelas no alto. De repente, lá numa esquina qualquer, desembocava um vulto. Assoviava. Era “Eu vou para a Vila”. Eu me sentia feliz. Tinha entrado no coração da cidade; compreendia a sensibilidade carioca; sabia comunicar-me com o povo. E esse meu destino de criador de ritmos parecia-me o destino ideal.
O rádio começava a dominar. As meninas do bairro já não tinham como único e invariável assunto os galãs de cinema. Muitas já se esqueciam do Ramon Navarro, do John Gilbert e outros amantes da tela e falavam dos “ases” do rádio. Compenetrei- me de que era preciso entrar para o rádio. E não foi muito difícil. Fiz minha estreia na Rádio Educadora, com o Bando de Tangarás. Era, enfim, um “astro” do microfone. As mocinhas bonitas, e mesmo as feias, ouviam-me, quando me encontravam, cravavam em mim um olho curioso. Mais tarde, estive na Mayrink. E por último, no Programa Casé, onde me demorei por um largo período.
Eu tinha de mim mesmo uma boa impressão. De qualquer modo, tornara-me conhecido. Recebia convites para ir a festas. Acumulara, com o correr do tempo, um número apreciável de fãs. Não me encontrava com um amigo sem que este me consultasse sobre a minha última produção. Um belo dia, recebo convite para uma excursão ao sul do Brasil. Deveria ir com Francisco Alves, Mário Reis, Nonô e Peri Cunha. Aceitei. Lá fomos nós, cantando, semeando melodias, e sempre aclamados. No ano passado, estive em excursão nas cidades de Vitória e Santos. A boa estrela da sorte acompanhava os meus passos. Assim é que, em todas as regiões percorridas, agradei sempre.

Depois de “Festa no céu” e “Minha Viola”, iniciei uma fase de intensa atividade musical. Atividade, por assim dizer, ininterrupta. Era preciso desenvolver um trabalho que correspondesse à minha ânsia criadora. Mas o gênero para que me sentia inclinado era o samba e exprimindo-me através do samba. Basta dizer que, em 160 produções, só realizei três foxes, três canções e três emboladas. Tudo o mais é samba.

Mas o meu maior e definitivo sucesso foi obtido com “Com que roupa?”, samba que impressionou bastante, como se verifica pela sua difusão, a sensibilidade do povo. “Com que roupa?” tem uma história interessante que vale a pena contar aqui, a título de curiosidade. Foi um caso que se passou comigo mesmo. Com Sangue de boêmio, eu passei a chegar em casa, em determinada época, a altas horas da noite. Vinha de festas, ou de serenatas, ou simples conversas. Mas o fato é que essa vida, passada toda em claro, devia prejudicar a minha saúde. Foi o que aconteceu. Comecei a emagrecer. A emagrecer assustadoramente. Adquiri uma orelhas dramáticas. “Que é isso, Noel paixão incubada?”, perguntavam-me. Eu sorria. Mas quem mais se assustava era mamãe. Pressentiu, antes que ninguém, o meu estado. E dia-a-dia, renovava as suas advertências, os seus apelos, para que não me demorasse mais, que eu acabava doente.

Eu prometia que sim. Mas a minha vontade era nula. E chegava, fatalmente, às mesmas horas com as mesmas olheiras e aquele emagrecimento progressivo, que estava alarmando todo mundo. Desespera- da de conseguir a minha obediência pelos recursos da persuasão, minha mãe lembrou-se de um antigo recurso, mas cujo efeito é sempre eficaz. Assim é que escondeu todas as minhas roupas. Sem exceção. Fiquei desesperado. O pior é que, na véspera, mandara que alguns amigos me viessem buscar para irmos a uma festa. Os amigos não faltaram. A noite, batiam lá em casa: “Como é, Noel, vamos para o baile?”. E eu, dentro do quarto: “Mas com que roupa?”. Mal eu tinha acabado de soltar a frase, quando me ocorreu a inspiração de fazer um samba com esse tema. Daí o estribilho:
Com que roupa, eu
Ao samba que você me convidou?
Foi um barulho. Todo mundo cantou. É assim que eu faço as minhas coisas. Com situações, episódios, emoções, aspectos colhidos na vida real.
Houve uma fase na minha vida em que vi abrirem-se os meus olhos, uma interrogação desconcertante. O samba bastaria para encher minha vida? Ou era preciso seguir uma carreira austera, fazendo melodias só nas horas vagas, como um simples e in- consequente recreio? Eu me havia bacharelado pelo Mosteiro São Bento. Sabia alguma coisa. Entrei para faculdade de medicina, no firme propósito de ser médico.

Mas não tardou que me convencesse de que a medicina era uma carreira absorvente. Estudos in- cessantes, profundos, que não poderiam ser jamais abandonados, que exigiam todas as atenções. Eu devia continuar com o samba, deixando a medicina? Ou devia renunciar ao samba? Era uma alternativa dramática. Outra questão se apresentou aos meus olhos: qual era o destino mais coerente com a minha natureza, com as minhas aptidões natas? O criador de ritmos ou o médico? Colocado na contingência de optar, uma vez que as duas atividades não podiam ser conciliadas, escolhi o samb.

O disco com que roupa? Vendeu 15 mil exemplares, o que é uma tiragem bem considerável e raras vezes atingida. Do outro lado do mesmo disco, o público encontrou outra produção minha: “Malandro medro- so”. Tive, ainda, algumas melodias que se fundiram bastante, tais como “Mulata fuzarqueira”, “Cordiais saudações”, “Quem da mais?”, “Para esquecer”, “Três apitos”, “Até amanhã”, “Você, por exemplo”, “Dona Aracy”, “Dona Emília”. De parceria, reuni as seguintes composições: “Gosto mas não é muito”, com Francisco Alves e Ismael Silva; “Não faz amor”, com Agenor de Oliveira; “Vai haver barulho no chatô”, com Valfrido Silva; “Para me livrar do mal”, com Ismael Silva; “Fui louco”, com Bide; “Triste cuíca”, com Hervé Cordovil.

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