Por falar em Hamlet…
No personagem mais famoso de Shakespeare, a reflexão se sobrepõe à ação e a paralisa, algo impensável na literatura até então. A peça começa com a descoberta do assassino e termina após a vingança de Hamlet. Shakespeare nos coloca diante das reflexões do herói. Assim Hamlet é considerado o drama da consciência. Vingar ou não o pai é o dilema do príncipe. Mas Shakespeare faz dele o dilema do homem e da cultura diante de um mundo em transição, transformado pelo Renascimento, pela descoberta da América, pelo heliocentrismo de Copérnico. A dualidade é uma das chaves para ler a peça, e está presente em toda sua construção: ação e palavra, pai e filho, a loucura simulada e a loucura verdadeira, o assassinato e sua encenação, a própria peça dentro da peça. É uma das obras mais analisadas e interpretadas de toda a história da literatura mundial.
Ato 3, cena 1
Elsinor, na sala do castelo
HAMLET – “Ser ou não ser, eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias
E, combatendo-o, dar-lhe fim?
Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono – dizem – extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer, dormir…
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite
e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado,
as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal?
Quem agüentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão, porque o terror de alguma
coisa após a morte –
O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante
nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar males que já temos,
A fugirmos para outros que desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento.
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho,
Perdem o nome de ação.”
(Tradução de Millôr Fernandes)