As chuvas ainda não cessaram. Por aqui. Mas resta pairando no céu um manto úmido de nuvens pesadas. Água. Muita. Tenho-me aqui sobre a cama. Tenho os pés gelados – esse ar condicionado ainda me mata! – embora os mantenham enrolados em uma fina colcha que me acompanha em minhas noites insones.
Os ruídos me chegam pelos braços do ar. São vozes. Músicas. Campainhas. Sinto o pulsar desse coração companheiro e respiro o ar que chega e me alimenta. É isso mesmo. Não apenas o escuto porque ele não é tão somente barulho. É a desesperada tentativa de todos os egos dando continuidade à vida em superfície.
Escuto. É um vizinho discutindo com outro. A Rede Globo, subliminarmente, impondo o seu padrão de qualidade e repetindo exaustivamente que “você se vê por aqui”. A intriga. A lamentação em cima das dificuldades e todo o mais.
Mas há o barulho que não escorre, que fica contido dentro de minha cabeça, mas que é o mesmo desespero. Vejo todo o barulho e entendo que ele existe para que se mantenha a farsa do ilusório mundo da superfície.
Assim não se dá permanência apenas ao prazer. À diversão. Ao gozo. Assim, garantem-se nossas ignorâncias e desumanidades. Mantendo o ego doente, somos doentes e precisamos da dor. Então, a dor é bendita porque nos força a viver a verdade. E é preciso senti-la.
Sinto eu que aquele que já não se sustenta em superfície deve abraçar a dor. Posso vê-la como uma corda jogada para dentro. Como uma ponte que nos leva para dentro do nosso verdadeiro mundo. O nosso centro. O nosso interior.
E eu já não posso dizer que ir ficando no silêncio, ficando inteiro dentro, sem pontas para fora, é permitir-se à vida. Aqui. Agora contemplo o meu dragão e suas faces e suas garras. Divido-me em dois mundos: um é silencioso em si; o outro é apenas farsa. E nela estou morto!