E O PARQUE ASA BRANCA DO GONZAGÃO VIROU MOTEL E SALÃO DE FORRÓ DE PLÁSTICO

E O PARQUE ASA BRANCA DO GONZAGÃO VIROU MOTEL E SALÃO DE FORRÓ DE PLÁSTICO

O mês de agosto chegou com gosto acre na boca. Porém, até a data presente, neste chamado por muitos de mês do azar, se não acertei uma só loteria, e acerta não poderia, pois nunca aposto em jogo de azar, nada sofri por ter cruzado com gatos pretos no caminho e passado por debaixo de muitas escadas. A verdade é que das pragas de urubu que são muitas e inesperadas nenhuma me pegou.

O mês de agosto como ficou claro no parágrafo primeiro, nunca foi para este escriba mês de superstições, mas o da partida de Luiz Gonzaga, o herói da minha mãe. Desde os mais distantes tempos que não voltam mais, Gonzagão já era chamado por minha mãe, Dona Chiquinha, que se mudaria para outra cidade, a mesma do Luiz, logo depois, carinhosamente de Lua. Nunca ouviu falar no Paulo Gracindo, dono desse carinhoso batismo. Mesmo assim nunca estranhei que assim o chamasse, vendo no rosto dele essa lua que somente mais tarde, graças ao Paulo Gracindo, o povo descobriria.

Por aqui todos sabem e muitos por outras plagas sabem também que o filho de Santana e Januário trocou de roupa e foi morar noutra cidade no segundo dia do mês de agosto de noventa e oito. Mas se todos sabem de quase tudo sobre o maior cantador da nossa flora e fauna e usos e costumes, poucos sabem, mesmo em sua Exu tão próxima daqui, que o bom Luiz Gonzaga e pai adotivo do ótimo Gonzaguinha morreu na penúria, apelando para que os amigos mais próximos, pois muitos amigos em vida hoje, morto o rei, ficaram distantes, não se esquecessem de comprar remédio para aplacar as dores que só mais tarde descobriria que esse remédio, fabricados pelas mãos dos homens, jamais aplacariam.

Não fui nos últimos meses (faz tempo que passei por aquelas bandas) à cidade de Luiz Gonzaga. O meu tempo anda pouco e, como pouco tempo tenho, pouco tenho andado pelos cantos que são meus e cantos de outros que gosto. Mas um amigo de letras e de copos, menos de cruz, pois não sou de carregar a minha nestas costas que carrega um mundo, esteve por lá e me contou. O Parque da Asa Branca, o belo sonho do sanfoneiro arretado, virou um pesadelo para a família e os poucos amigos que deixou por lá.

Só estive com Luiz Gonzaga duas vezes apenas. E por acaso. Ele no fim de carreira, eu começando a minha. Ele saindo da música, vencido pela idade e a falta de sonhos, eu entrando na universidade, sonhando ser uma coisa e descobrindo, fora dela, começando a carreira, lembrando o Paulinho da Vila, em busca de um lugar no futuro, que graças a Deus em nada ela me influenciou.

Luiz Gonzaga era muito sorriso quando interpretava Luiz Gonzaga, e pouca conversa quando descansava o artista. Hoje imagino sua decepção lá em cima – ou em baixo, não separo os meus mortos por andares – com o desrespeito a sua história. Triste constatar que o seu Parque Asa Branca virou salão de dança e motel para amores escondidos e ávidos de desejo. Nele, ao som dos Aviões do Forró, Calcinha Preta, Mastruz Com Leite e outros da mesma espécie, jovens exuenses dançam embalados na triste ilusão de que aquilo que escutam – impossível alguém ouvir essas coisas – e dançam é o forró criado pelo filho mais ilustre daquela terra.

E não adianta. Eles, pobres forrozeiros de plásticos, que assim como a flor do Caetano Veloso exalam mau cheiro, se ouviram falar da Asa Branca, rápidos no gatilho que dispara as maquininhas de contar dinheiro, sacaram o revólver e derrubaram-na em pleno voo. Ninguém sabe por que proibiram – é quase uma proibição – de tocar Luiz Gonzaga no parque que ele criou e sonhou ser usado um dia para lembrar/guardar a sua história.

A vocês de lá que não são do sertão nem do serrado, confesso que essa sacanagem não foi surpresa para este escriba acostumado ao mal que sempre atacou o povo brasileiro, e limpou com o mais forte dos detergentes os nomes dos nossos homens de bem de sua memória. Se o Ivan Lessa bateu nas teclas e fez uma de suas mais famosas frases dizendo que “a cada quinze anos, o Brasil esquece os últimos quinze anos”, por aqui, na região gonzaguiana, a cada quinze minutos, o nordestino – tudo bem, é o país todo – esquece os últimos quinze minutos.

Lá em Exu e, por tabela, aqui na minha bela e aconchegante Província das Acácias, embora esquecidos que estão, vez por outra alguém lembra que Luiz Gonzaga, assim como se atira um indigente em cova rasa, foi atirado pela família e amigos num leito de um hospital (Santa Joana), esfacelando-se em osteoporose e o velho coração batendo no ritmo descompassado de seus baiões.

Duas recordações, porém, apesar dos costumeiros lapsos de memória, como por exemplo não lembrar por que até agora Paulo Maluf continua em liberdade e a nossa Constituição, apesar de suas 60 emendas em apenas 10 anos ainda não se emendou, guardo do porta-voz de Zé Dantas em suas bela Vozes da Seca (“uma esmola para o homem que são/ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”). Uma, a boa, a da minha mãe cantando com a sua voz desafinada, mas com uma beleza (a rima foi proposital) que somente as mães sabem cantar, a música que é também a cara do meu irmão João (de novo) em que diz “Bate a enxada no chão, limpa o pé de algodão pois pra vencer a batalha, é preciso ser forte, valente, robusto e nascer no sertão”.

A outra, a ruim, a triste, igual a sacanagem que fizeram – e continuam fazendo – com o maior dos artistas da chamada Música Nordestina e, quiçá, deste nordestino Brasil, foi o último show dele a que assisti. Sem fôlego para alcançar notas antes tão conhecidas pela garganta sem nenhuma lapidação musical, desafinado e fora do ritmo, inerte, sentado numa cadeira improvisada, confundindo suas pernas com as pernas da cadeira e acompanhado por uma sanfona que não era a sua.

Ah, o Parque da Asa Branca? Nenhuma vontade de revê-lo. E, mesmo que assim o desejasse, não encontraria por lá a Asa Branca do Gonzagão, pois, ave alguma, por menos musical que possa ser – no meu quintal moram sanhaços e beija-flores – não aguentaria as sanfonas e guitarras desses forrozeiros de mentira.

Em tempo: do  livro “O que me restou do silêncio…” de Humberto de Almeida

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