Esse amigo carreando um corpo que não é seu…

Esse amigo carreando um corpo que não é seu…

Trabalharmos juntos por mais de quatro décadas. Uma vida? Muitas. Ele nasceu por aqui mesmo.  Se a memoria não falha, falou-me um dia.  Em jaguaribe.  Sou de Jaguaribe. Vocês sabem. Ou muitos sabem. E os poucos que não sabiam, ficam sabendo agora.

 

Mesmo sendo desse bairro, o meu e agora nosso, não tenho a minha lembrança dele nos meus tempos de menino-jaguaribe. O motivo? Simples: ele gostava – não pratica mais – de um esporte, eu de outro. O meu era futebol. E se digo “era”, embora gostando ainda, é pelo fato de não mais gostar tanto assim. Ele não. Até bem pouco tempo, mesmo aos quase 70 anos, praticava o seu – dele – com a mesma alegria e o mesmo prazer de os tempos de outrora. Era um craque nesse esporte que praticava.

 

Ainda guardo boas lembranças dos primeiros anos de trabalho juntos. Ele estudante, eu no mesmo caminho. Ambos alunos sonhadores da nossa Universidade Federal.  Eu, hoje anos distante daquelas anos primeiro de estudante, nenhum sonho tenho mais. Todos realizados? Não.  Alguns.  Os outros deixo para realizá-los, como dizem por ai, na eternidade. Sonhos eternos. Esses ninguém os destruirá. A eternidade tem esse mal:  é para sempre.

Mas, como nele comecei falando, agora continuo.

O encontro sempre. Está doente. Muito. No entanto nega a todos que carregam no corpo maior que um metro um meio, um doença que hoje se apresenta incurável. Ele, todos falam, cuidou tarde. Eu falo também.

Segundo um de seus muitos médicos consultados, vai precisar de um transplante. Está na fila. Mas, pelo avançado dessa doença que lhe pegou no caminho dos setenta, não terá muito tempo para esperar. A fila é longa e a vida pede pressa. Especialmente a sua, isto é, a dele.

 

 Está magro. Magérrimo. Os ossos da face pulam aos olhos de todos. Sentimos que os amigos fazem de conta que ele não está tão ruim quanto o próprio NÂO pensa. Simples, costuma dizer. Apenas um “distúrbio orgânico” comum aos homens de sua idade. Não é.

 

No fundo ele sabe que não adianta ficar diante do espelho e negar que os cabelos caíram e os dentes vão nesse mesmo caminho. E nada de perguntar “onde deixei aquele rosto sem rugas e olhos brilhantes, cheios de manhãs somente esperança?”. Agora é tarde. Ele não escuta. Mas é o que os amigos e outros dizem ao vê-lo carregando um corpo que não é o seu.

 

Está como uma bexiga cheia de ar que a qualquer momento pode se desmanchar no ar.  Mesmo sendo solido. Mas, como diria o Milan Kundera, tudo que é sólido se desmancha no ar.  Ele, assim como todos nós, solido é. É o seu caminho. O nosso. Ou nos desmanchamos no ar ou voltamos ao pó. Todos voltam a ele. Não existe outro caminho. Vai-se ao ar, e volta em seguida para a terra. Retorna como pó.

 

 Espero estar enganado. Errado.  Afinal, todos nós erramos nos atos, gestos ou intenções. Somos um ser imperfeito. Não chegamos nem perto da imagem do Ser perfeito que nos inventou. Um projeto. Apenas.  Somos. E o pior é que esse projeto nunca deu certo. Nem dará.

 

Não sei mesmo por quanto tempo ainda continuarei vestindo esta roupa que ainda visto, e morando nesta cidade. Mas, mesmo nessa incerteza, não acredito que ele, carregando um corpo que não é o seu e nesta cidade morando, vestindo a roupa que ainda veste, irá passar por aqui muito tempo.  Embora tenhamos a “esperança” como um sonho em comum. Essa, ele sabe, será a última a morrer. Mas morre. Mesmo assim, enquanto isso não ocorrer, vamos vivendo com ela.  

Vida longa para todos nós!

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