O ébrio

Filme brasileiro dos anos 40 copia americano e “estoura”
“O Ébrio” foi baseado em “The Lost Week End” e se tornou um estrondoso sucesso nos cinemas dos Estados Unidos”
  
João Pessoa, Paraíba – DOMINGO, 22 de setembro de 2019
A UNIÃO

Você sabia que “O Ébrio”, filme brasileiro estrelado pelo cantor Vicente Celestino e produzido por sua mulher, a atriz Gilda Ribeiro, foi baseado numa fita similar realizada nos Estados Unidos, intitulada The Lost Week End, dirigida por Bill Wilder? A surpresa deste lembrete é que, mesmo sendo a película nacional copiada sob o tema de uma similar americana, cujo ator principal foi Ray Milland, a brasileira acabou em estrondoso sucesso de bilheteria, tanto no Brasil quanto nos EUA. Já a congênere da terra do Tio Sam resultou em fracasso e não emplacou entre os filmes de longa metragem mais preferidos no país, em 1945.
“O Ébrio” estrelado em 1946 – um ano após o fracasso do similar americano por Vicente Celestino, que na época não possuía o padrão de beleza de Bill Wilder, alcançou vinte anos em cartaz. E se destacou como o filme brasileiro do qual mais cópia se tirou, informa o advogado, pesquisador, musicólogo e crítico cinematográfico José Alves Cardoso. Ele superou com facilidade a bilheteria de “Farrapo Humano”, o título em português de “The Lost Week End”. “Os dois filmes geravam constantes comparações da crítica da época, por tratarem do mesmo tema”, afirma D. Cardoso, como o crítico é conhecido nos meios artísticos e literários.

Após gastar dois anos e 300 mil cruzeiros no processo de restauração de “O Ébrio”, a RioFilme o relançou em 1998, quadro a quadro, utilizando um equipamento que melhorou som e imagem, esta última ganhando mais 25 minutos inéditos. Exibido em Paris em 2002, durante um festival brasileiro de cinema, o filme atraiu gente para lotar o L’Arlequim, na Rive Gauche. Ao voltar ao Brasil, a única cópia melhorada do filme foi detida pela Alfândega, apesar de toda a documentação de exportação estar correta.

As sinopses dos dois filmes não podiam ser mais melosas, principalmente a americana. Mesmo assim a brasileira, sem sair do lugar comum, agradou ao público. Falava de um jovem do interior, com grande talento para a música e boa situação financeira, que se chamava Gilberto Silva. O rapaz muda do vinho para a água, quando sabe que seu pai perdeu os bens, inclusive a fazenda.

Sem apoio dos parentes, Gilberto migra para a cidade grande, perambulando pelas ruas, até que, desesperado, entra numa igreja e um padre ouve os seus pedidos de ajuda. O grande sonho do jovem era entrar para a Faculdade de Medicina, mas,
Já a produção americana, mais requintada, retrata o alcoolismo de forma realista, interpretada por Ray Milland. “Este ator viveu, no filme, um sujeito que tem crise de abstinência ao ser privado de beber durante uns dias, daí a razão do título em inglês, “O Fim de Semana Perdido”. As crises de delírio retratadas em cena pelo intérprete são impressionantes”, coloca D. Cardoso, que adianta: “Apesar de filmado há 72 anos, este filme pode ser visto, hoje, como uma produção atualizada”.

Cantor brasileiro nunca deixou o país, mas foi “A Voz Orgulho do Brasil”.

Em “O Fim de Semana Perdido”, Ray Milland vive Don Birman, que sonha em ser escritor, mas não consegue o objetivo. Então, se afoga no álcool e é acometido de um bloqueio mental. Por fim esquece das pessoas que o rodeiam, inclusive sua namorada, Helen St. James, editora de uma revista. Apaixonada, ela faz tudo para ajudá-lo, sem conseguir.
Nos dois filmes, os resulta- dos finais são idênticos: ambos os personagens – o brasileiro Gilberto e o americano Don Birman, são guindados dos luxuosos palcos para os ambientes das boates de terceira classe e circos de subúrbios.
Sem nunca ter saído do país, Vicente Celestino, como cantor, se tornou “A Voz Orgulho do Brasil”, embora por diversas vezes, seus companheiros de elenco demonstrassem claramente que o invejavam, usando golpes baixos para atrapalhar sua carreira. Certa vez um comissário de polícia do interior paulista tentou entrar à força no camarim de Celestino e o porteiro não permitiu. Irritado, o homem sacou um revólver e, Celestino, a espada, que usaria durante a representação de um duelo em opereta. O ator Alfredo Silva interferiu e a briga acabou, mas Vicente foi preso. No dia seguinte uma ordem do presidente da República mandou soltar o astro.
Muito disputado pelas emissoras, Celestino foi autor de diversos sucessos, como “O Ébrio”, “Conceição” – esta
última imortalizada na voz de Cauby Peixoto -, “Serenata”, “Coração Materno” e “Mia Gioconda”. Lançado em 1936, “O Ébrio”, lançado em 1936, foi adaptado para o cinema 10 anos depois, conservando a sua característica sombria e dramática”, lembra Dom Cardoso. Narra a vida de um homem que, após ser traído pela esposa, ver a morte da filha e a rejeição dos parentes, se transforma num alcoólatra. Seu desempenho no filme leva a plateia às lágrimas, quando implora para morrer, a fim de acabar o sofrimento.
Antonio Vicente Felippe Celestino, nasceu no bairro de Santa Teresa (RJ), em 1894. Foi o primeiro varão da família Celestino. Garoto travesso, muitas vezes levou chineladas da mãe. Uma das maiores descobertas de Vicente aconteceu aos dez anos, em 1904, quando ele avistou na rua um homem estranha- mente vestido, portando uma caixa falante. Era um gramofone – o aparelho de som de hoje. De outra vez, ao assistir um filme musical, correu para trás da tela a fim de ver, ao vivo, as moças que cantavam e dançavam sobre o palco. Deu trabalho para explicar-lhe que a cena era projetada por uma máquina.
A atriz Gilda Abreu, em cujos braços Vicente teve um infarto mortal dentro de um quarto de hotel, era esposa do cantor-ator. Ela conta, no livro de sua autoria “Minha Vida com Vicente Celestino, uma cena engraçada, vivida por ambos, em 1921. Vicente ia encenar “O Mártir do Calvário (Jesus). Mas, na hora de ser alçado ao céu, por um cabo de aço, perdeu metade do bigode postiço. Foi aquela confusão. Vicente pegou uma “piola” de cigarro no chão e improvisou um bigode com as cinzas. A encenação foi salva, embora o bigode de Jesus ameaçasse desmanchar-se.
“O Ébrio”, lançado em 1936, foi adaptado para o cinema 10 anos depois, conservando a sua característica sombria e dramática, lembra Dom Cardoso.
 
 Não se sabe porque, mas o ator inglês naturalizado americano Ray Milland, aos 40 anos, não conseguiu emplacar o seu filme “The Lost Week End”, que inspirou a criação de “O Ébrio”, no Brasil, em 1946. Mylland ganhou o Oscar de Melhor Ator com essa fita, mas o público não gostou do enredo. Resultado: nos Estados Unidos e no mundo inteiro, sua película resultou em fracasso de bilheteria.
D. Cardoso diz que Reginald Alfred Trustcott-Jones, que americanizou seu nome artístico para Ray Milland, dirigiu inúmeros filmes, foi ator em vários, contracenou com as musas da época como Marylin Monroe e Ava Gardner, por exemplo, mas não foi longe com The Lost Week End. No País de Galles, onde nasceu, chegou a diretor e ator de cinema. Também ganhou o prêmio do Festival de Cannes e pousou de herói nas cenas de ficção científica entre 1940 e 1950, quando a Paramount criou este gênero de filmes.

“Talvez por causa de alguns episódios de azar, ele não tenha obtido sucesso com The Lost Week End. Também não se sabe se, nos EUA, assistiu ao sucesso de bilheteria de “O Ébrio”, esclarece D. Cardoso. Inicial- mente Ray Milland usou o nome artístico de Reginald Mullane. Depois foi Spike Milland, Raymond Milland. Aliás, o nome Milland ele ti- rou de uma rua com aspecto de mal assombrada, chama- da Milland Street, em Neath, na Inglaterra. Será que veio daí o seu azar?
Era tímido e, às vezes, se enrolava numa fala. Ao ganhar o Oscar de melhor ator em 1946, não disse uma palavra.
Nem riu para a plateia. Quando integrou a Guarda Real de Londres, foi chamado à atenção, por displicência. Simultaneamente faturou O Oscar em 1946 e ganhou o Festival de Cannes. Nos EUA, nesses tempos, era considerado um novato cafona. Além de não participar dos ambientes badalados e de glamour, casou com a atriz Murial Weber e morreu em sua companhia, após 51 anos de União.
Milland deixou, também, duas estrelas na Calçada da Fama, na Vine Street (EUA). E por que não chegou lá com The Lost Week End? “Há quem diga que a população conservadora dos Estados Unidos, na década de 1940, não apreciava este tipo de filme, que falava da miséria de um homem provocada pelo alcoolismo. “O americano cria pornografia e más sinas para consumo extrafronteiras, mas ele próprio não aprecia, guardando-se as proporções”, compara Dom Cardoso.
Começou a filmar na Inglaterra em 1920. Resolveu ir para os EUA, enfrentar Hollywood, por considerar seu país natal ainda muito atrasado no que se referia às tecnologias de filmagens. O filme Farrapo Humano, tradução em português de The Lost Week End, não emplacou nem no México. O Ébrio, similar estrelado por Vicente Celestino quebrou o tabu americano de conservadores, talvez por achar que o fracasso de um homem, diante da bebida, fosse melhor incorporado por atores latinos.
“Celestino revelou-se bom ator e cantor, e seu papel, em “O Ébrio”, impressionou bastante a crítica no Brasil e no mundo”, diz D. Cardoso. “O biótipo de galã ostentado por Ray Milland, era aquele do tipo bonitão, de cabelos englostorados e lisos, totalmente o contrário do que Celestino apresentou na tela”. Mesmo sem sair do Brasil, Celestino conquistou um público de várias idades, que admiravam seus cabelos cacheados e seu rosto comum. A voz diferente, foi outro item a favor do brasileiro, que exibia sua voz ora em shows, peças e filmes.
Milland, a partir do final da década de 1950 participou de inúmeros filmes, como ator ou diretor. Após alguns anos de ausência, retornou às telas em 1970, no filme Love Story e em
outros de baixo orçamento. Participou de diversos episódios em filmes e seriados para a televisão. Os exemplos estão em Hart to Hart, Charlie’s Angels, The Love Boat, Fantasy Island, Rich Man, Porr Man, entre outros. Um câncer no pulmão, que talvez tenha se originado do hábito de fumar, matou-o aos 81 anos
O ator angloamericano, era um homem taciturno, bonitão, mas nada de volúvel, Seu casamento com Muriel durou mais de meio século. O casal nunca esteve na crista das fofocas. Não se sabe da ocorrência de filhos. “Eles viviam em harmonia ímpar e, na minha opinião, atribuo ao hábito de não beber, o desempenho insosso de Myland, para o público americano, no papel de um alcoólatra”, reflete D. Cardoso. “Por outro lado, a crítica americana o elegeu para o Oscar de Melhor ator, neste mesmo filme. Dá para entender?
Outra curiosidade nesta história dos dois filmes é que, Celestino e Gilda, Milland e Murial Weber nunca se viram ou falaram. Os casais se mantiveram à distância. Acostumados a vencer em todas, os americanos preferiram ignorar o fato de que, um filme de tema idêntico, realizado com boa tecnologia nos EUA, te- nha perdido em bilheteria, neste mesmo país, para uma película trabalhada com orçamento médio e tecnologia simples.
A imprensa especializada em filmes e seus astros dizia, na época, que “Milland sempre se manteve afastado das luzes de Hollywod, sendo raramente mencionado nas colunas sociais. “Este comportamento muito discreto, era próprio dos habitantes de Glamoragan, no País de Galles, onde o ator nasceu”, observa D. Cardoso. O tipo caladão e pouco sorridente do europeu entrava em contraste com os indiscretos americanos, como Marilyn Monroe, que não hesiava em tirar uma foto com as saias esvoaçantes, para ganhar espaço nas colunas de fofocas
Em 1973 Ray Mailland já es- tava com 68 anos, mas gostava de ser fotografado em atividades que denunciavam estar em boa forma. O câncer já o perseguia, com pequenas hemorragias no pulmão e dores fortes na região lombar. Um exame realizado num hospital de Beverly Hills, depois em Nova Iorque, revelou uma metástase progressiva. O único fato coincidente entre a vida dele e a de Vicente Celestino foi a de que ambos morreram com suas únicas esposas ao lado.

Hilton Gouvêa
hiltongouveaaraujo@uol.gmail.com

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