Ele é de Pombal, uma cidadezinha – a quarta mais antiga do Estado da Paraíba – a 375km da capital. É muito longe não, diz , como se fosse logo ali na esquina do bar mais próximo. Falei em bar por falar. Ele não bebe nem fuma. Foi a resposta que me deu um dia. Não sei quantos filhos tem. Mas, com certeza, tem um que segue o mesmo caminho do pai.
Faz um bom tempo que é barbeiro. No entanto, durante toda sua vida, como trabalhador, hoje aposentado nessa profissão, foi “segurança” em nossa Universidade Federal e em alguns bancos. Lembrou outro dia que a segurança que “dava aos bancos” era interna. Não colocava nem o rosto na janela. Isto, ressaltou, se nos bancos em que trabalhou, nesses janelas tivessem.
Os seus cortes de cabelo nada tem de artísticos. “Baixinho, número 1, 2 ou meio?”. Pode ser um e meio? Também pode. Mas nada de desenhar barba ou fazer cortes como aqueles dos jogadores de futebol. Artísticos, sim, artísticos. O papo, esse comum a todos os barbeiros que se prezem, não é sobre futebol e política. Religião. Ah, nessa, ele faz barba, cabelo e bigode.
Tateando aqui, gaguejando ali, costuma citar umas passagens bíblicas que decorou em sua igreja. Nunca lhe perguntei o nome nem a linha. Evangélico? Isso! Ele é evangélico. Mas não me disse nem lhe perguntei. No entanto, pelo versículos escritos em papel oficio e espalhado pelo pequeno espaço de sua barbearei, uma dúvida só não se tem: evangélico.
Logo atrás da pequena cadeira de barbeiro, simples, parecendo mais uma daquelas de” mesa com quatro cadeiras”, ler-se “Você pode se sentir fraco mas Deus é forte. Ele lhe dará a força necessária para continuar em frente. Deus não vai desistir de você”. De quem? Não esconde a autoria: Josué 1:9. Faz questão que o freguês, enquanto tem por ele o cabelo cortado, reflita sobre o que o espelho a sua frente reflete.
Ao lado, sendo visto ainda pelo espelho, está escrito, numa folha de papel oficio, o que diz o “2 coríntios 4.17”: “Os nosso sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles”. Finjo que não vejo. Mas é impossível não ver. A sua fé grita em nossos ouvidos. Tanto que não escutamos o “tric-tric” da tesoura que pouco usa, nem a máquina que caminha leve pela minha cabeça espalhando velhos tufos de neve. Esses mesmos que me custaram muito para adquirir.
Fala muito. Ora, s não falasse, sorrio para dentro, nunca seria um barbeiro.
Enquanto os tufos de neve caem, conta-me uma história do “santo” Frei Damião. Um santo! Repete. A história se passou na vizinha cidade de Condado, distante de sua terra natal uns 30 km. Foi ali que viu mais um “milagre” do Frei. O milagre? Uma mulher “possuída” foi levada para o “santo frei” tirar o “espírito mau” dela. Chegou toda amarrada. O frei, então, falando baixinho e mansinho como lhe era peculiar, pediu para que a mesma fosse desamarrada. O medo foi geral. Como?! Todos ficaram espantados. Soltar o demônio?! Mas, como a palavra do Frei era mais forte que a do Papa, assim fizeram. E não é que a mulher, ao ver o frei, ajoelhou-se e chorou como uma menina? Atirou-se aos seus pés e pediu-lhe a benção?
Tudo escuto. Nem balançar a cabeça concordando – ou discordando – se pode. A navalha é afiada. Tem mais: as suas mãos tremem um pouco. Fico calado.” O frei Damião era mesmo um santo!”. A afirmação vem com o meu olhar, visto por ele pelo espelho. Termino o cabelo. Mas ele continua a contar o “Milagre do Frei Damião”. Não acredito em milagres, assim como nunca acreditei no Frei Damião. Mas não poderia mostrar a minha descrença com uma navalha no pescoço.