O velho que andava remando, ela que da vida sabia muito….
o de chapéu é o meu craque Heráclito de Almeida

O velho que andava remando, ela que da vida sabia muito….

Era todo o dia.  Não tinha um em que ele não chegasse com o seu jeito de sempre chegar. Remando. A minha mãe dizia que ele vinha assim.  Remando. Pausa. Assim mesmo.  Não andava o meu pai, dizia a minha mãe, remava.

 Um dia, mesmo achando que ela estava querendo dizer outra coisa com esse seu “remando”, sem nunca desconfiar que o meu pai poderia ter sido um dia marinheiro, como na verdade marinheiro nunca fora, prestei uma atenção maior do que aquela que todo o dia lhe prestava: meu pai remava mesmo, a minha mãe tinha razão.

 Dona Chiquinha sabia tudo e mais um pouco dessa vida. No dia em que o meu irmão mais velho trocou de roupa e foi morar noutra cidade, fui o escolhido para lhe dar a notícia. Tinha que ter um jeito todo especial. Não podia chegar para ela, sem uma preparação prévia, e dizer simplesmente que “Nado morreu”. O “Nado” aqui, permitam-me ressaltar, nada tem a ver com o meu pai que “remava”. Esse era o carinhoso apelido de Leonardo Jorge de Almeida.

 Ah, o meu pai “remava”! Descobri naquele dia em que lhe prestei mais atenção. O remava de que a minha mãe falava, tinha realmente muito a ver com o mar. Marinheiros. Barcos. Tudo o que a minha imaginação conseguia associar ao verbo “remar”. Mas o remar que ela via não era diferente. O andar remando.  Era esse a que ela se referia.

 O andar do meu pai era balançado. Verdade. Firme, porém, sem perder o ritmo que as pernas pediam. Tendo as pernas arqueadas, “tronchas”, como se dizia na época, andava no balanço de suas – das pernas – curvas. Essas faziam parecer que remava. “Lá vem Heráclito remando! ”. Ouvir inúmeras vezes a frase. Tanto que fui obrigado, como vocês viram, a dedicar maior atenção ao fato: por que o meu pai remava?  Por que o meu andava remando?

 Confesso que demorei um bom tempo para saber de onde a minha mãe havia tirado essa imagem associada ao “remar”. Agora, sabendo de tudo, fim do mistério. Não somente via o homem que chegava remando. Via mais. Via navios, marinheiros remos e mares. Tudo me lembrava do seu andar.

 Dizem até que o meu pai nasceu “na praia”. Dizem. O mistério, o belo mistério, porém, ainda hoje continua sendo o mesmo mistério de ontem. Nenhum dos filhos sabe dizer com certeza onde fica “essa praia” em que o meu pai nasceu. Mas quando um dos filhos começa a desfiar lembranças do velho, a Praia da Penha, essa que nunca deixou de ser a praia mais querida de todos da família, é apontada como sendo o berço do meu velho remador.

 Mas sem esquecer o andar remador do meu pai, lembro que Dona Chiquinha, a minha mãe e companheira do meu doce Clarinetista por toda a vida, nem esperou que a notícia da mudança e troca de roupa do filho mais velho fosse-lhe passada. Sabia! Já sabia!  Foi só lhe perguntar se estava sabendo, naquela maneira preparatória para a “trágica” noticia final, procurando o melhor eufemismo para aquele momento, ela veio de resposta na ponta da língua: sabia!

 Muita antes de receber deste filho mais novo a notícia de sua partida, contar-me-ia, depois, que sabia.  E quem lhe deu a notícia primeiro que eu? “Ele…”. Respondeu com a naturalidade de quem metia o dedo no disco do telefone para ligar para o velho companheiro. Tudo muito natural. “Ele me contou. ” E trocou em miúdos:  “Léo (chamava-o assim) bateu na minha porta e, numa voz que em nada mudava daquela que estava acostumada a ouvir, disse que estava partindo…”.

Dona Chiquinha

Dona Chiquinha

 Era assim Dona Chiquinha. Era assim o meu velho pai que andava remando.

Compartilhar...Share on FacebookTweet about this on Twitter

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Required fields are marked *

*


+ 9 = doze

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <strike> <strong>